quinta-feira, 12 de março de 2009

Histórico da Ópera Crioulo por António Tavares


Começou em 1989, ainda em Cabo Verde, o interesse pela música de Vasco Martins. Cheguei mesmo a pedir-lhe que escrevesse uma peça musical para um espectáculo que na altura tinha em mente e que, pelos mesmos motivos de hoje como pelos de então, me fazem mover pelas coisas que essas ilhas têm de interessante e que constituem razão de estudo para qualquer criador. Lembro-me de ter proposto para a peça “Crioulo” a mesma intenção. “Nascimento do Crioulo” era o seu título provisório (chegámos mesmo a fazer um contrato de compra com o compositor onde o valor da peça ficou fixado em oitenta mil escudo cabo-verdianos).

Lembro-me de nas minhas visitas a casa do compositor, no Monte do Sossego, com o meu colega e amigo Victor Vaz, do Vasco nos introduzir e mostrar o seu sistema de Midi. Nas nossas conversas, ele falava-me pela primeira vez de Stravinsky: «Devias ouvir este compositor. É excelente para quem quiser aprender a compor». Ficaram-me estas palavras na memória, que me levaram até ao Centro Cultural Francês em busca do tal homem, de nome esquisito, de que me falava e onde encontrei algumas referências.
Foi em 1991 que recebi uma bolsa para vir estudar em Lisboa. Também aí, antes de vir, o Vasco deixou-me várias impressões sobre a cidade e o país.

Levei de volta em 1997 a minha primeira peça e voltei a encontrar-me com ele, tendo-me na altura apresentado várias peças originais e um disco, “Danças de Câncer”. Com ela estreei no Nes-Theatre em Amsterdão. A sala estava cheia. Era cabeça de cartaz. O impacto com o público foi estranho – metade da sala a aplaudir de pé e outra metade sentada. Na conferência no pós-espectáculo, várias pessoas questionavam-me sobre a originalidade da peça: uns achavam que copiava criadores europeus e que a música não era africana e outros achavam fantástico por ser algo que englobava esses dois mundos – Europa e África.

Foi nessa altura que, para mim, o interesse pelo sincretismo se tornou ainda mais marcante. Andei à volta desta matéria. Procurei pelas ilhas este elemento que, a partir de então, se tornaria o meu cavalo de batalha – o sincretistismo cultural em Cabo-Verde. Encontrei nas palavras do escritor Luís Romano motivos para seguir com esta inquietação “Euro-afro-Verdiana” presente na sua tese.

Após isto, em 2002, de volta a casa de Vasco Martins, ele apresentou-me a sua nova peça musical “Lágrimas no Paraíso”. Foi na mesma altura que recebi, da parte da Vereadora da Cultura da Câmara Municipal do Mindelo, a Dra. Maria Estrela, um convite para a abertura da “Mindelo Capital Lusófona da Cultura”. Pensei usar esta oportunidade como expressão de um manifesto que percorreria as ruas do Mindelo e mais uma vez recorri ao Vasco, debruçando-me com ele sobre a peça musical para este evento. Preparámos um trabalho de fusão com a introdução de elementos de raiz tradicional numa estrutura de base clássica. Convidámos músicos das diferentes ilhas do arquipélago e outros na diáspora e fundimos todas estas referências naquilo a que chamámos “Crioulo”. O impacto junto do público e da crítica foi excelente, fazendo-nos mais tarde voltar a repensar a peça com uma nova roupagem e adaptá-la a uma formação mais pequena, de modo a poder pensar na sua apresentação pelo mundo.

Foi em 2007 que recebi um telefonema de João Charters, um senhor que não conhecia mas que havia assistido à apresentação nas ruas do Mindelo, em 2002, mostrando-me o seu grande apreço pelo que tinha visto então –


«António, adorava que pudesse apresentar esta peça em Portugal», adiantou. Depois de várias tentativas, chegámos ao CCB, junto do Dr. António Mega Ferreira, onde apresentámos o projecto, tendo este sido de pronto aceite, recomeçando assim uma nova etapa.
Nesse mesmo ano, voltei a reunir-me com o Vasco, na sua casa, onde lhe apresentei esta proposta da parte do CCB. Sempre quis chamar Ópera “Crioulo” à peça, conferindo-lhe uma dimensão que fizesse jus a este nome, embora houvesse quem até então a considerasse uma “Opereta”. Foi neste sentido que, desde 2003, a peça musical vinha sendo rescrita pelo Vasco, para uma base de orquestra clássica, ganhando uma outra dimensão em relação à peça de 2002. Finalizou-a em 2007 e entregou-nos as partituras para esta nova apresentação que estava, inicialmente, com estreia agendada para Abril de 2008, no Grande Auditoria do CCB, mas que por motivos que me são pessoalmente dramáticos acabou por não ter lugar nesse ano. Com o acidente de viação que atingiu os meus filhos em Janeiro, não tendo o mais pequeno, Sassá, resistido ao brutal impacto, a peça foi inevitavelmente adiada, tendo sido acordada nova data para Março de 2009. Recomecei os trabalhos em Janeiro de 2009, tendo permanecido com o mesmo elenco escolhido em audições levadas a cabo no ano anterior.

Para esta peça houve um acréscimo nas três linhas fundamentais – musical, coreográfica e plástica – para repor a mesma temática mas agora com novo desenho, uma nova dimensão que já vinha a ser pensada desde 2003. Até então, trabalhámos na ideia dramatúrgica e plástica sem conhecer as inovações feitas pelo Vasco em relação à peça original.

As partes musicais por ele propostas são agora de curta duração, com textos sem ligação narrativa entre eles, uma espécie de haikus retirados da tradição e história de Cabo Verde, sem fio condutor para formação de um desenho dramatúrgico. Foi então, a partir da narrativa construída pela linha coreográfica e plástica, que a dramaturgia foi sendo tecida e a ideia de ópera, em toda a sua dimensão e escala, começou a fazer sentido – este é um grito surdo que lançamos em forma de Ópera.

António Tavares (Fev. 2009)

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